Como Alair Martins ergueu o maior atacadista distribuidor do país

Pergunte a Alair Martins, fundador do Grupo Martins, a potência atacadista de quase R$ 5 bilhões de faturamento anual, o que ele mais gosta de fazer: “negociar”, responde, com o sorrisão aberto, do alto de seus 80 anos de idade. Márcio Utsch, presidente da Alpargatas, a fabricante das Havaianas, sabe bem disso. Certa vez, ele e a família foram convidados por Alair para passar um fim de semana em seu sítio. Chovia. Como precisavam de privacidade para falar de negócios – e a piscina era o único lugar disponível –, Alair não teve dúvida: foram os dois para a água, cada um carregando um guarda-chuva. A conversa, no entanto, não foi amena, como poderia parecer. “O pau comeu solto e ele lá, segurando aquele guarda-chuva, dentro da água”, afirma Utsch, dando risada. “Saímos até meio brigados, e só no fim da noite chegamos a um acordo.”

Por aí dá para ter uma ideia de como Alair Martins, criado na roça e sem educação formal, conseguiu montar a única empresa de distribuição que chega a todos os municípios brasileiros, vendendo 17 mil itens diferentes, de 600 fornecedores, para 400 mil varejistas. Para isso, a estrutura é grande. São 5,3 mil funcionários, 1,1 mil caminhões e tecnologia de ponta, em todas as áreas – da inteligência de estoques ao televendas, passando pelos sistemas de gestão e transporte.  Martins está testando em sua frota, por exemplo, o primeiro caminhão automatizado com dois computadores de bordo, desenvolvido em parceria com a Volkswagen. “Ele é o pior tipo de negociador”, diz Utsch, que tem no Martins seu maior comprador, há muitos anos. “Porque nunca fala uma palavra áspera, nunca é rude ou desrespeitoso. Ao contrário, é ético e inteligente – só que troca a meia sem tirar o sapato.”

A habilidade para negociar com a indústria foi o que levou o pequeno comércio fundado por Martins em Uberlândia, há 60 anos, a se transformar no maior atacadista distribuidor do país. Até chegar lá, porém, Martins capinou, literalmente, muita roça. Nascido num distrito longe da cidade, aos 5 anos de idade foi “jogado no mundo do trabalho”, como diz. Fazia serviços domésticos e ia para a lavoura assim que o sol nascia, já que a família, muito simples, nem relógio tinha em casa. Desde os 7 anos, Martins tentava convencer o pai a deixá-lo ir para Uberlândia, onde os tios tinham uma mercearia. Só conseguiu a autorização aos 17. Martins gosta de dizer que, dessa época, vieram as noções que norteariam sua vida. Aos 15 anos, por exemplo, ele queria muito uma bicicleta. O pai concordou, mas impôs condições: Martins teria de conseguir o dinheiro plantando sua própria lavoura de feijão. Só poderia cuidar dela aos domingos, já que trabalhava para o pai nos outros dias. Mas foi lá e fez. “Conseguir a bicicleta me deu mais alegria do que comprar meu primeiro carro ou o primeiro avião”, diz ele.

Um ano e meio depois de chegar a Uberlândia, quando mostrou que tinha jeito para o comércio, seu pai resolveu vender o sítio da família e construir um pequeno armazém de secos e molhados. Meio na intuição, Martins começou a crescer: convenceu o motorista da jardineira a parar na porta de sua loja, para deixar a clientela mais perto e permitir que ele atendesse as listas de entrega que vinham dos sítios nos arredores. Também vendia cereais a preço de custo e anunciava os produtos em alto-falantes, como faz hoje o grande varejo. E, o mais importante, passou a negociar direto com a indústria. Comprava muito mais do que conseguia vender, mas começou a dar os primeiros passos no atacado, dividindo o pedido com os concorrentes. Em um ano de loja, tinha dobrado o capital investido pelo pai. Nos cinco primeiros anos, cresceu, em média, 70% ao ano. Em 2013, suas vendas aumentaram 15,3% sobre as do ano anterior, enquanto o setor teve alta de 4,4%.

É claro que, nessa longa história, houve muitos e muitos tropeços. “Já errei muito, principalmente quando não tinha equipe”, diz Martins. “Era tudo muito intuitivo – e intuição é fundamental – mas a empresa, depois de certo porte, precisa de processos, planejamento e se cercar das melhores pessoas e consultorias.” Martins diz, por exemplo, que houve uma época em que quis entrar em muitas áreas e acabou perdendo o foco. “Tivemos de nos desfazer de algumas companhias para retomar o foco em nosso negócio principal.” A empresa também ficou presa à estrutura centralizada em Uberlândia por mais tempo do que deveria. Até 2009, todos os produtos distribuídos pelo Martins eram transportados para a cidade. Um sabonete fabricado em São Paulo viajava até Uberlândia antes de chegar no pequeno varejista paulista – ou de qualquer outra parte do país. Além do custo, isso muitas vezes gerava créditos tributários praticamente eternos e falta de competitividade, já que concorrentes regionais começaram a oferecer serviços em menos tempo e mais baratos. “Pela grandiosidade, o Martins é como um transatlântico”, diz Walter Faria, presidente do grupo. “Não fazemos curva, mas mudamos um pouco por dia e chegamos ao destino que queremos.”

Assim, se até dezembro de 2009 90% dos produtos que a empresa vendia saíam de Uberlândia, hoje o percentual é de 57% – com tendência de queda, depois da inauguração de depósitos em Jundiaí (SP) e no Rio de Janeiro. Bom para os outros estados e bom para os clientes mineiros, já que a estrutura em Uberlândia se voltou  para o varejo local. “Uberlândia cresceu 40% em termos de faturamento e hoje temos o mesmo número de pessoas de 2009”, diz Faria, que começou a carreira como estoquista na Lojas Glória, em São Paulo, e foi diretor de marketing e vendas da Colgate, antes de ir para o Martins.

Na estratégia de descentralização, as unidades são autônomas tanto na compra de produtos regionalizados, quanto na prospecção de clientes. Porém, a matriz acompanha de perto o andamento das metas de vendas e lucratividade. “Além dos números, sabemos pelo sistema quem são os gerentes responsáveis, as lojas e os vendedores que estão ou não perto de seus objetivos”, diz Faria. “É uma radiografia precisa.” O investimento em tecnologia também permitiu que os 540 funcionários de televendas tivessem o mesmo desempenho de quando a empresa tinha mil pessoas em seu call center. Hoje, o sistema faz a ligação para o atendente na época em que o cliente costuma comprar e, por meio de regressões estatísticas das últimas 12 semanas de compras, apresenta na tela o pedido praticamente pronto. “O índice de eficiência da equipe aumentou em 70%”, diz Faria. “Estamos dando agora mais um passo, especializando os times de vendas de acordo com os diferentes mercados e direcionando mais funcionários para as áreas com demanda maior.”

Fornecer para o Martins ou ser seu cliente pode ser o aval para uma empresa chegar ao sucesso, como mostrou o depoimento do agora empresário Nelson Piquet, na edição de maio da NEGÓCIOS: o ex-piloto deu um cheque em branco para Martins e disse que poderia descontá-lo daí a um ano, caso não ficasse satisfeito com seus rastreadores. Isso porque ser fornecedor ou ser distribuído pelo Martins pode significar um produto acontecer ou não em todo o país, sobretudo no comércio mais popular. Martins sabe muito bem disso e usa o poder para negociar, é claro. Uma estratégia tão bem amarrada que a agência Fitch Ratings deu duplo upgrade à empresa no ano passado, classificando-a como A, graças a seu modelo de negócio, “com forte posição de mercado, presença nacional, carteira de clientes pulverizada, baixo risco de crédito, logística eficiente e sólido relacionamento com a indústria”.

O Martins também tem o aval da IFC, o braço financeiro do Banco Mundial, dona de 11% do capital do Tribanco, também do grupo. Voltada para fomentar iniciativas que estimulem a melhoria econômica de países em desenvolvimento, a IFC entrou no negócio para ampliar o acesso ao microcrédito “em setores pouco privilegiados e remotos da economia”, segundo sua análise sobre o Tribanco, que lida direto com o pequeno empreendedor, da base da pirâmide.

Fortalecer o pequeno varejista é, inclusive, um dos pilares de expansão do Martins para o futuro, agora que a descentralização está andando. “Quando percebeu a inevitável entrada das grandes redes na área dos pequenos, o Martins fortaleceu esse elo da cadeia e teve papel fundamental para que pudessem competir de igual para igual”, afirma Eduardo Yamashita, diretor do núcleo de pesquisas econômicas da consultoria GS&MD. Para isso, o grupo criou o Sistema Integrado Martins, espécie de ecossistema do pequeno varejista. Ele reúne, além do banco, uma empresa de cartões, uma corretora de seguros, a central de televendas, a Universidade Martins do Varejo (UMV) e a rede de supermercados Smart.

Assim, na UMV o pequeno comerciante faz cursos básicos de gestão e recebe projetos como o layout ou a iluminação de sua loja. Em troca, é claro, de fidelização: o varejista tem de comprar 10% do seu mix de produtos no Martins. Caso queira, o comerciante também pode se associar à rede Smart, hoje com 950 afiliados. Nesse caso, entra num modelo mais padronizado: investe mais e tem o respaldo do Martins para todas as frentes do negócio. “O consumidor não quer mais andar de carro por uma hora para ir ao hipermercado”, diz Martins. “Ele vai à loja de bairro.” E as grandes redes, anunciando planos de migrar para as lojas de bairro, não o preocupam? “No longo prazo, isso preocupa”, diz Faria. “No curto, não: temos 70 mil clientes que conhecem sua freguesia e têm muito para crescer.” Para isso, o Martins anunciou que seu plano de investimentos na rede Smart passou de R$ 30 milhões, entre 2012 e 2013, para R$ 100 milhões neste e no próximo ano.

Alair Martins vai à sede da empresa todos os dias, participa das convenções pelo país afora e continua tendo presença marcante na empresa. “Os fornecedores se ouriçam quando ele chega”, diz Evaldo Couto, gerente de relacionamento com fornecedores do Grupo. Para Martins, é a maneira de continuar a fazer o que gosta. “Dou expediente, mas arrumei um jeito de chegar mais tarde: faço duas horas de academia todo dia.” Para aproveitar o tempo, pede ao personal trainer para ler enquanto faz esteira. Para Martins, não foi tão difícil deixar o operacional da empresa. “Lido [com a perda de comando] com disciplina, mas vivi um período de adaptação, claro. Tomei gosto por delegar há muitos anos e gosto de compartilhar o que estou pensando.” Agora, o objetivo é fazer com que o Grupo Martins se torne a primeira empresa do setor a completar cem anos de idade. “Estão todos engajados nesse compromisso e, quando chegarmos lá, vou estar lá em cima, comemorando!”, afirma.

Fonte: Época Negócios